quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Neuroses Eclesiásticas

As Más Notícias

Uma Análise Preliminar

A hora agora é de recebermos notícias más, e nunca é agradável falar de coisas ruins. Mas vamos acreditar no que o Senhor Jesus disse: “a verdade vos libertará” - mesmo se essa verdade não for tão bonita quanto gostaríamos que fosse. Como compensação, na hora das boas notícias, novamente será a verdade quem vai nos ajudar.

Antes, porém, de falar dos nossos problemas, quero aqui reconhecer e testemunhar que a Igreja faz muito bem para muita gente. Ao longo de 2.000 anos de Cristianismo, são muitas as pessoas que encontraram na igreja o caminho do evangelho de Jesus Cristo, endireitaram suas vidas, recuperaram-se socialmente, emocionalmente, e passaram a viver muito melhor o restante de
suas vidas nesta terra, sem falar na vida eterna nos céus. Isso não pode e nem pretende ser negado aqui. O convite deste livro é para observarmos a verdade de que, além de ter feito bem a muita gente, essa mesma igreja também tem feito muitas pessoas sofrerem - inclusive nós mesmos, às vezes. No dizer do apóstolo Paulo, “se nós julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados” (I Co 11.31). Esta é a intenção deste livro: um auto-julgamento, na esperança de, com a ajuda de Deus nesse auto-exame, virmos a ser mais aperfeiçoados, cristãos melhores e mais saudáveis.

O MAL-ESTAR DA IGREJA

A má notícia é que não estamos tão bem assim. Embora muitos líderes de grandes congregações e ministérios pensem de modo diferente, as constatações de muitos gabinetes pastorais e de também de consultórios psicológicos se juntam às daqueles que sentem que a igreja não está bem. E não está bem porque os crentes não estão bem.

No meio de uma sociedade que vai adoecendo seus relacionamentos, a Igreja não tem se saído muito melhor. Buscamos aqui as “neuroses de igreja” - ou “neuroses eclesiogênicas” - adoecimentos, especialmente emocionais, que são típicos de quem participa da vida de uma igreja, e ali aprendeu a se relacionar com Deus. Neuroses são definidas como um adoecimento de
origem psicológica, em que os sintomas (o comportamento que se vê) são a expressão simbólica de um conflito psíquico. Não tenho a pretensão de fazer uma análise completa e abrangente de todos os quadros e tipos - nossas igrejas diferem muito entre si e minha capacidade é bastante limitada. Mas há sinais de doença emocional mais evidentes e que trazem sofrimento a muitos - vamos tentar nos focar nestes.

Não se pode considerar uma igreja boa quando seus membros não se sentem bem. Muitas vezes os membros das igrejas parecem presos a uma estrutura circular, repetitiva, em que só podem receber a graça de Deus os que estão muito mal, muito necessitados ou infantilizados (como, por exemplo, os que fazem fila para receber a unção ao final dos cultos dos irmãos neopentecostais,
ou os que pedem oração publicamente nos cultos dos irmão tradicionais). Enquanto isso, a igreja incentiva testemunhos de vitória, exemplos de seriedade e compromisso, grandes conquistas, coisa que crentes infantes se sentem incapazes de oferecer. As igrejas podem até estar cheias, mas o que aconteceria se, apenas como exemplo, desligássemos os microfones e os instrumentos musicais?

Os crentes provavelmente “acordariam” para sua realidade, se perceberiam mais distantes uns dos outros, sem muita coisa para assistir, mais abandonados e carentes do que realmente lhes faria bem - contato real, humano, amoroso e edificante - e provavelmente muitos se afastariam das reuniões. Mas essas constatações de um mal-estar na igreja precisam de mais fundamento.

Que sinais enxergamos do mal-estar entre os crentes?

Loucura?

Um sinal bastante intrigante é encontrado nos sanatórios, hospitais psiquiátricos para doentes mentais em estado grave. Embora atualmente muito combatidos (por boas razões, diga-se), os sanatórios também estão cheios, e com muitos irmãos evangélicos entre os pacientes. Isso poderia apontar duas coisas: ou a igreja estaria enlouquecendo as pessoas que a procuram, ou talvez a igreja seria procurada por pessoas que estão enlouquecendo e não consegue
recuperar sua saúde mental. É claro que isso não é tão simples assim - em muitos casos a igreja alivia o sofrimento psicológico dos que a procuram. Para nosso propósito, por enquanto, tomemos os sanatórios cheios de evangélicos apenas como um sinal de que algum problema deve haver; mas ainda não é suficiente para concluirmos nada.

Frustração?

Um segundo sinal: o mundo está cheio de ex-crentes. Já nos anos 80, segundo o Jornal Batista, o número de ex-batistas no Brasil era praticamente igual ao número de batistas na ativa. Muito provavelmente isso também se aplica às demais denominações evangélicas tradicionais. Com o fenômeno das igrejas neopentecostais, uma nova safra de crentes evangélicos inundou o Brasil e, à medida que os anos passam e as promessas de prosperidade não se cumprem, uma nova safra de ex-crentes decepcionados deve estar voltando para as ruas, enquanto outros crentes começam uma “peregrinação” de igreja em igreja, intuindo que há alguma verdade salvadora nesse meio, mas não se sentindo seguros de a ter localizado. Essa massa de irmãos freqüenta as “igrejas da moda”, que são duramente criticadas pelas igrejas mais estabelecidas, que não
admitem sua parte de culpa nessa decepção coletiva.

Esse já é um sinal mais direto. Não esperamos que a igreja satisfaça a todos que a procuram. Mas decepcionar a tantas pessoas, dentre a pequena parcela da população que se decide a entrar nela, é sem dúvida mais um indicador de que há problemas sérios que não estão sendo tratados, uns nas igrejas tradicionais, outros nas pentecostais.


Desconfiança?

Um terceiro sinal: o receio em relação à ciência, especialmente as ciências humanas, tais como a Psicologia e a Sociologia. O grande desenvolvimento da ciência moderna teve em seu princípio muita participação de cristãos. Eram pessoas que se dedicavam à maravilhosa descoberta das coisas, dos seres, do universo, em suma, a contemplar as fantásticas obras de Deus. Com o tempo, o espaço dado a Deus foi encolhendo, e hoje a ciência tem fama de ser quase uma inimiga de Deus.

As ciências humanas investigam nossas motivações mais profundas, os desejos diversos da alma humana, denunciando muitas incoerências que encontram, e a fé em Deus parece ser desafiada em todas as universidades (pelo menos é o que sentem muitos líderes cristãos). Felizmente, essa resistência tem diminuído, mas ainda persiste em grande parte do meio evangélico.

E por que o crente tem medo de consultar um psicólogo? Primeiramente, talvez, porque é difícil para todo mundo admitir que temos problemas, e mais ainda quando aprendemos (e ensinamos) a cantar que Jesus é a solução de todos os nossos problemas. Além disso, temos medo de que o psicólogo vá nos encorajar a abandonar nossa fé, a abandonar nosso casamento, ou a própria igreja, etc. Provavelmente, mesmo sem isso estar claro para nós, temos receio da psicologia - e da universidade em geral - porque talvez ela poderia desmascarar nossos cânticos, questionar nossas certezas, e denunciar nossa moral que tão custosamente pregamos aos jovens e adolescentes. Se estivéssemos mais seguros de que aquilo que cremos e pregamos é sem sombra de dúvida a verdade, não deveríamos ter tanta desconfiança, não é mesmo?

Na verdade, nossa dificuldade não é apenas com a psicologia, ou com as ciências humanas, ou mesmo com a ciência em geral. Temos grande dificuldade é em lidar com críticas. E isso só revela nossa absoluta falta de hábito de nos criticar, de praticar a auto-crítica. I Coríntios 11:31 diz: “se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados”. Quantas vezes você já ouviu um sermão
ou aula sobre esse texto? A crítica envolve a difícil tarefa de reconhecer erros, ouvir reclamações, parar nosso ritmo frenético de atividades e falas e se dispor a escutar, a refletir, a examinar, a criticar. A prática da crítica implica em aceitar, sempre, um certo montante de fracasso. E isso parece que não condiz com a postura de quem tem o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores a
seu lado.

Pasteurização?

Mas ainda há um quarto sinal de que as coisas não vão tão bem assim conosco: a qualidade de vida que levamos. Qualidade, não em termos econômicos ou de conforto material, mas de “qualidade viva” mesmo. Nossa vida evangélica, no dia-a-dia, poderia ser chamada de “pasteurizada” (dos leites em saquinho), ou então UHT: como aqueles leites de caixinha, nossa vida sofreu um choque térmico altíssimo, e ficou estéril, infecunda, sem muito brilho nem
muita cor. As pessoas de fora da igreja consideram o crente como “aquele que não faz isso, não participa daquilo, não prova aquiloutro”, ou seja, uma identidade negativa. O crente é visto como um ótimo funcionário, bom trabalhador, mas péssimo para se conviver, sem disposição de se sociabilizar.




Karl Kepler, psicólogo, pastor, professor de Teologia e presidente do CPPC (Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos).

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